Consciência Negra para um inconsciente embranquecido

A psicanalista Neusa Santos Souza no livro ‘Tornar-se negro’ afirma que “no Brasil, nascer com a pele preta e compartilhar de uma mesma história de desenraizamento, escravidão e discriminação racial não organiza, por si só, uma identidade negra”¹. O que isso significa e quais as implicações para as pessoas negras?

Por volta de 1850, o Brasil passou por um processo de abertura do território para a entrada de imigrantes europeus com a finalidade de, entre outras, substituir a mão de obra escrava pela mão de obra livre e assalariada. Substituição essa que deixaria o negro de fora, importaria mão de obra branca e relegaria a população negra, enfim liberta da escravidão, a uma condição de marginalidade. Das senzalas para a rua, para os manicômios, para as prisões. Não houve no país políticas de reparação histórica aos danos que mais de trezentos anos de escravidão produziram sobre a população africana no Brasil. Não é por obra do destino ou do acaso ou por falta de força de vontade que 75% da população brasileira mais pobre nos dias de hoje seja negra.

A política de embranquecimento no Brasil no pós-abolição, como alguns intelectuais chamam – posto que outra finalidade do custeio da vinda de imigrantes europeus era embranquecer a população do país – esta política de embranquecimento não apenas negou à população negra o direito a bens materiais, mas também o direito de ser inscrita simbolicamente por si mesma nos discursos e símbolos que vão compor o inconsciente coletivo do país nos séculos seguintes.

As narrativas produzidas nas escolas e nos meios de comunicação, por exemplo, vão simbolizar a população negra como escrava, tratando discursivamente quase como sinônimas as palavras negra e escrava ou negro e escravo. Há poucas narrativas sobre a resistência negra no Brasil, poucas narrativas sobre as fugas e construções de quilombos, poucas narrativas sobre homens e mulheres negros e negras protagonistas da história do Brasil. Houve no país a produção discursiva quase que de uma história única em relação a população negra. Milhões de negros e negras foram educados para se sentirem descendentes de escravos.

O inconsciente das pessoas negras no Brasil foi embranquecido porque os símbolos e discursos que vão aparecer como belos, desejáveis, humanos e dignos de valor são brancos. A televisão é majoritariamente branca, assim como a indústria da moda e da publicidade, os espaços de poder do executivo, do legislativo e do judiciário, o corpo discente e docente das universidades. Já as pessoas em situação de vulnerabilidade social, presas no sistema penal, moradoras de favelas, são majoritariamente negras.

O psicólogo Lucas Veiga fala em artigo para o Conexão. Foto: Francisco Costa

Os símbolos de prestígio, beleza e poder dentro da discursividade hegemônica são brancos. Toda essa produção discursiva produz subjetividade, ou seja, produz modos de ser, estar, sentir, pensar, perceber a si mesmo e ao mundo, e nem sempre temos consciência das engrenagens que geram determinado modo de ser, estar, sentir e pensar. Há uma dimensão inconsciente que constitui a nossa subjetividade.

Tenho falado nos meus cursos e palestras que não existe pessoa negra racista. Que uma pessoa negra que tem uma atitude interpretada como racista, na verdade, padece de auto-ódio. O auto-ódio é uma engrenagem inconsciente de negação a si mesmo². A população negra no Brasil é provocada, por múltiplos dispositivos, a odiar seus traços, sua pele, seu cabelo, sua história, sua ancestralidade. Para além disso, vivemos no país em que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. O afeto projetado sobre os jovens negros discursiva e objetivamente por meio das políticas de segurança é o afeto do ódio. Esse ódio — que faz com que policiais matem cinco jovens negros com 111 tiros, que faz com que o exército atire 80 vezes contra um carro com uma família negra dentro — pode ser introjetado, resultando num doloroso processo de auto-ódio.

Como psicólogo, tenho defendido e vivenciado na minha experiência clínica que auto-ódio tem cura. E um dos caminhos fundamentais para a cura é a construção de uma identidade negra positiva, ou o que Neusa Santos Souza chamou de “tornar-se negro”. Esse processo passa pelo enegrecimento dos símbolos e dos discursos por meio das produções literárias, artísticas e científicas de pessoas negras, bem como por um exercício permanente de interpretação da realidade levando em conta os efeitos do racismo nas subjetividades e nas condições materiais das pessoas negras no Brasil. Essa conscientização negra confronta o inconsciente embranquecido e produz novos modos de ser, estar, sentir, pensar e perceber a si mesmo e ao mundo. O empoderamento de pessoas negras está diretamente relacionado com a conscientização da realidade social do racismo e da grandiosidade de ser africano e africana. A grandiosidade de pertencer ao povo que criou as bases que originaram a Medicina, a Matemática, a Filosofia; povo que criou o samba, o jazz, o rock, o blues, o hip hop, o funk, o axé; povo que construiu as pirâmides do Egito.

Numa perspectiva africana, ser humano é ser parte finita da divindade infinita que nos constitui e nos excede. Nesse sentido, ser negro e negra é ser uma divindade na Terra. Reencontrar-se com os sentidos que nossos ancestrais africanos produziram sobre o que significa ser humano é também caminho de construção e de fortalecimento de uma consciência negra conectada com sua potência.

¹Souza, N. S. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

² Veiga, L. M. Descolonizando a Psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista de Psicologia, v. 31, n. esp., p. 244-248, set. 2019.

Lucas Veiga é psicólogo e mestre em Psicologia. Pesquisa e escreve sobre questões anticoloniais, saúde mental da população negra e a clínica no contemporâneo. No consultório, faz atendimentos individuais e em grupo, bem como oferece supervisão clínico-institucional a outros profissionais. Desde maio de 2018 tem ministrado cursos sobre Psicologia Preta em várias partes do país. O instagram @veigalucas_ é a principal plataforma em que divulga seu trabalho.

Artigo publicado no site Conexão UFRJ
Edição 20 / Novembro/ Dezembro de 2019 — Link da publicação

Crédito da arte do texto: Pintura digital do artista visual David Francisco dos Santos.