Tempo, memória e criação durante a pandemia de Covid-19
Nesse período de quarentena, a relação com o tempo está modificada, muito em função da suspensão de um de seus principais marcadores: a rotina. Somos constituídos pelas nossas práticas de vida e, neste momento, a vida que estávamos acostumados a levar foi interrompida.
A suspensão da maneira que vivíamos modifica a nossa relação com o presente. No momento em que o presente é fortemente atravessado por medo, angústia, tédio – e outros afetos por vezes difíceis de manejar – experimentamos outra relação com o tempo.
As viagens no tempo podem se intensificar durante a pandemia do coronavírus. Fazemos um mergulho no passado, lembrando de experiências agradáveis que, de alguma forma, servem de consolo neste momento, mas lembramos também de situações difíceis ou desagradáveis que nos marcaram. Certa avaliação sobre nossas escolhas, os caminhos que tomamos, a maneira como funcionamos também se intensifica.
A viagem no tempo não é linear, porque passado e presente não possuem relação de linearidade. Como somos/estamos no presente não é efeito direto do que se deu no nosso passado. Como somos/estamos no presente é efeito das conexões que fazemos na memória, de que sentidos produzimos a partir daquilo que nos aconteceu.
O presente determina mais o que se passou do que o contrário. E, com a nova realidade imposta pela Covid-19, estamos vivendo um presente sem precedentes, que nos coloca diante de nós mesmos de forma crua. Neste momento de intensa autoavaliação que o presente nos impõe, a viagem no tempo ou o mergulho em nossas memórias pode ser uma oportunidade não de apenas lamentar o que se passou ou de apenas sofrer com o que está se passando agora conosco e com bilhões de pessoas pelo mundo.
A viagem no tempo, a partir do presente que vivemos, pode nos levar a fazer novas conexões com a nossa história, a produzir outras compreensões sobre quem somos e o que temos feito de nossas vidas.
Essa viagem no tempo faz passado, presente e futuro coexistirem quando abrimos mão do que poderia ter sido para o que pode vir a ser. Como eu quero viver a minha vida, como eu quero ser e estar no mundo e nas relações se transforma então num exercício de criação. Não precisamos ser os mesmos. Boa viagem.
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Imagem: Rocco Stoppoloni / Unsplash