Como criar para si um corpo descolonizado?

Escrevi esse texto numa tarde de um dia qualquer durante a pandemia que assola 2020. Ele é efeito de muitos atravessamentos, de uma polifonia de sentidos que me atravessa nos últimos tempos. Escrevi como forma de dar corpo a algo que para mim ainda é tão sem forma e tão delicioso e difícil de habitar. Não é um texto para ser entendido necessariamente. É um texto para ser experimentado. Pode ser que ele te pegue em algum lugar inaudito, pode ser que ele passe por você e não produza nenhuma marca, pode ser que ele te jogue no chão, pode ser que ele te renove forças. Não sei o que será. Estou aberto para ele e tomara que você também esteja. Sem grau de abertura as rotas ficam sem saída.

A.rtaud sente a angústia do aprisionamento do corpo. A maneira como os órgãos estavam organizados limitava a potencialidade do próprio corpo assim constituído.

B.aruch de Espinosa percebe que não sabemos o que pode o corpo. Desconhecemos a potência de ser corpo no mundo.

C.omecei a escrever esse texto no primeiro dia de um curto recesso que decidi tirar dos trabalhos. Não foi bem uma decisão dessas tomadas pela consciência ou pela razão. Meu corpo parou. Parada que é efeito de ter chegado no portal da exaustão e no portal da transição. Quando se chega a esse ponto já não se suporta o que se suportava antes, já não é mais possível sustentar a si mesmo naquela posição. Os suportes existenciais que davam forma aquele modo de ser corpo no mundo precipitam no vazio. E esse acontecimento é um dos mais grandiosos que a vida pode nos proporcionar.

D.eitado na cama é o lugar mais seguro para se estar. Não ver e não ser visto por ninguém porque o que o outro verá é uma imagem que reflete algo que você já não é mais, mas que você ainda não sabe o que é e que, portanto, não pode ser visto.

E.xausto é a sensação que ficará por um tempo longo. Não conseguir lavar a louça, limpar a casa e cozinhar mesmo não tendo quem o faça. Não conseguir responder os e-mails, nem se alimentar direito.

F.alar consigo mesmo em voz alta como se fosse outro que falasse te fazendo ver e perceber coisas do passado e do presente de uma forma ainda não acessada por você, ainda não produzida. O passado, o presente e o futuro se fundam. O que está acontecendo? Estou enlouquecendo? Pergunta comum quando iniciamos o processo de descolonização do corpo.

G.ostaria de dizer que corpo aqui é tomado como sinônimo de subjetividade. Seu corpo é sua forma de ser, estar, sentir, pensar, desejar, perceber a si mesmo e ao mundo. Seu corpo, nossos corpos, foram organizados, programados, para atender e contracenar com a ficção forjada na modernidade.

H.á um corpo a ser descolonizado. A um corpo descolonizado se precisa poder chegar.  

I.nclusive é a chegada a um corpo descolonizado que garante a continuidade da vida com seu plano de forças que opera por meio de composições e decomposições. Escrevo a partir da leitura de uma certa dimensão da realidade, a partir do acesso à maquinaria do inconsciente. Plano de forças e inconsciente aqui são tomadas como sinônimas.

J.amais fomos não colonizados desde uma perspectiva do inconsciente. O inconsciente como plano de forças produtor de realidade opera por meio da criação de ficções. A vida humana e os modos de vida culturalmente criados são dobras no plano de forças infinito da vida produzindo formas finitas de viver. Ser humano é habitar uma ficção e construir uma ficção para si mesmo.

L.evantei da cadeira e fui andar pela casa. É algo que costumo fazer quando sinto que estou rodeando um portal mas que ainda não o atravessei, ainda não acessei esse outro do meu pensamento que me espera.

M.odernidade é uma ficção. Com ela veio a ficção do colonialismo, do racismo, do capitalismo. Estamos presos a essas ficções. São essas ficções que ainda constituem as dobras do tempo em que vivemos. É no seio dessas ficções que forjamos nossa ficção própria, nosso eu, nossas neuroses. Criamos para nós um corpo ficcional e como estamos imersos na ficção coletiva colonial, criamos para nós um corpo colonizado.

N.ão se pode perder de vista o fato de que criar ficção é próprio da vida humana, ficção não tem nada a ver com fake. Ficção é a própria realidade. Existimos ficcionando. O problema se instaura quando a ficção que o mundo está produzindo nos prende em modos fixos de viver que limitam a potencialidade própria da vida que é criar outras ficções, modos outros de incorporar a existência.

O. portal de acesso ao plano de criação – plano de forças que dá vida às formas, às ficções -aparece vez por outra para aquelas que estão atentas ao mundo. O portal que aponta para a saída da ficção atravessa como um feixe de luz aquelas que conseguem ter uma relação porosa com sua própria ficção. Estas são as que a ficção coletiva colonial violenta e tenta comprimir num modo de vida que se sabe limitado demais.

P.arece Matrix? Quer dizer, falar da realidade como criação de ficções é fazer ficção científica? Este texto é um texto literário de ficção ou é um ensaio científico sobre a realidade? A maneira como você consegue responder a essas perguntas determina sua entrada ou não no portal.

Q.uando acessamos o portal, quando acessamos o plano de criação da realidade e das subjetividades é a vida que enche nossos poros com força tamanha capaz de nos fazer respirar, ainda que por alguns instantes, o ar puro e indomável do fora da ficção.

R.etornar às nossas ficções individuais e coletivas depois de ter sentido que a vida possibilita mais, que um modo de vida fora do aprisionamento colonial e portanto rico em potencialidade poderia existir, mas que não é o que vivemos no contemporâneo, pode levar à depressão, à loucura, ao suicídio. O trajeto para a descolonização do corpo é perigoso. Olhar de frente para a realidade como aprisionamento das potencialidades próprias da vida é um dom, uma benção e uma maldição.

S.e esse dom será benção ou maldição dependerá dos usos que faremos dele.

T.odo processo de genuína criação é efeito do acesso a essa dimensão fora da ficção. A arte e a intelectualidade produzidas por corporeidades pretas, por exemplo, é um exercício de criação de ficções outras para si e para o mundo mediante o acesso às forças que engendram a realidade. Por sermos violentadas pela ficção colonial que ainda impera no mundo, estabelecemos uma relação de fuga dessa ficção perversa que tenta nos afastar da vida. E nessa fuga podemos desenvolver a capacidade de criar modos de vida próprios (ficções) com o máximo grau de liberdade possível.

U.rdir as linhas de fuga.

V.isionárias do fim do mundo, cavaleiras do apocalipse que apontam não para um futuro idílico livre de todo mal, mas para as frestas e os fôlegos de vida que permeiam o presente e que desvelam horizontes em que a criação do futuro se dá agora. Inventar futuro fora da ficção dominante é gesto de conquista singular de um corpo descolonizado.

X.

Z.umbi ressuscitou ao terceiro dia e nos revela em sonhos as rotas de fuga. A liberdade está logo aqui.

Publicado em 15/07/2020.