E se eu fosse a Beyoncé? Nota sobre a clínico-política do impossível

Depois de passar a segunda-feira atendendo meus pacientes do dia, fui ler o tal artigo crítico ao novo trabalho da Beyoncé. A crítica a uma obra faz parte do trabalho, em especial no campo das artes. Não há problema na expressão da crítica, mas no seu conteúdo. Parece que a antropóloga considera a reprodução de imagens do poderio de impérios africanos como sendo insuficientes para o debate racial nos dias de hoje. É quase como se ela dissesse que voltar os olhos a um passado de glória que, num certo sentido, não existiria mais, fosse insuficiente para resolver o problema do racismo no contemporâneo. A minha pergunta é: o que seria suficiente? O que resolveria de uma vez por todas os problemas do racismo? O trabalho de uma pessoa poderia fazê-lo?

Eu escuto essas perguntas todos os dias na clínica. Perguntas que aparecem no não-dito das pessoas negras que acompanho. Por mais que façamos, por mais implicados que estejamos dentro da nossa área de atuação no combate ao racismo e na busca pela descolonização, algo sempre nos escapa. E isso gera sofrimento psíquico que, por vezes, se desdobra em: “eu não sou suficiente”, “me sinto pequeno demais diante do tamanho do problema”, “não há o que fazer”.

Na clínica, as pessoas conseguem se afastar desse tipo de pensamento conforme entram em contato com a plenitude daquilo que podem. De frente para o impossível da resolução imediata do racismo, criam a partir de sua própria história as condições de sua própria libertação e as estratégias de vida que irão imprimir na relação com o outro e com o mundo. Neste ponto, há o desmoronamento do “e se eu fosse tal pessoa” ou “e se eu fizesse tal coisa que não é possível pra mim” para dar lugar ao exercício da sua máxima potência, que é diferente da potência do outro porque é singular, ainda que na coletividade essas potências expandam.

Beyoncé narra esse percurso clínico&político no seu filme. O percurso de tornar-se negro no sentido da afirmação plena da sua existência. E me parece que é para os filhos dela que ela o faz, para que eles não precisem se submeter ao projeto de embranquecimento que ela passou. E se é de mãe pra filho, faz sentido começar por África.