PANDEMIA E NEUROTIZAÇÃO DA VIDA: COMO SERÁ O AMANHÃ?

De todos os efeitos que a pandemia tem produzido no mundo e nas subjetividades, a interiorização, sem sombra de dúvida, é um de seus efeitos mais democráticos desde um ponto de vista global. Interiorização de cada país dentro de suas fronteiras estabelecendo regras rígidas de circulação e vetando entrada de estrangeiros. Migração de cada cidadão para o interior de suas casas com regras rígidas de higiene e evitação de contato com terceiros. Retorno de cada indivíduo para o interior de si mesmo com sonhos lúcidos, autoanálises intensas e pensamentos obsessivos sobre si e o que se passa com o mundo.

De um ponto de vista clínico, a interiorização ou o fechamento em si mesmo é o que caracteriza as neuroses. Desde os primórdios da história da psicanálise, a neurose esteve diretamente relacionada primeiro com certa reclusão dos corpos a um familismo burguês de tipo papai e mamãe (o tal Complexo de Édipo) e segundo às limitações impostas ao sexual ou, numa perspectiva esquizoanalítica, impostas ao desejo entendido como a própria potência da vida. A subjetividade neurótica é aquela que fechada em torno de uma história criada sobre si mesma, recusa ou tem muita dificuldade de entrar em contato com o fora, a alteridade do desejo, de entrar em contato com as potencialidades de experimentação de modos outros de ser, estar, sentir e desejar.

Vivemos agora uma neurotização da vida em escala planetária no sentido de que somos convocados à interiorização, a nos fecharmos em torno de nossos países, nossas casas, de nós mesmos. A interiorização é o motor da neurose e o medo é seu afeto mais correlato. Voltados para dentro e com medo acompanhamos através do black mirror das telas de nossos celulares, notebooks e televisões ao fim de uma era materializada no fim da vida de milhares de pessoas ao redor do globo.

Por mais aterrador que seja esse momento, sabemos que, como toda pandemia na história, ele é passageiro. Ainda que não saibamos precisar a duração dessa situação calamitosa, em algum momento, poderemos desinteriorizar. Em algum momento, as fronteiras de nossos países, de nossas casas e de nossos corpos estarão novamente abertas. A questão é sob quais condições, que tipos de países teremos nos tornado, que tipos de arranjos domésticos teremos construído, o que terá acontecido com nossas subjetividades.

É certo que o que será de nós está sendo forjado agora, no seio da pandemia. Tal como numa linha de montagem, o processo de produção está inserido no produto final. Por isso é tão fundamental e urgente cuidarmos desse processo, colocarmos esse processo em análise, mas sem tentar esgotar os sentidos para isso que nos acontece, mantendo aberto o campo de interpretação da realidade, ou melhor, fazendo da elaboração desse momento que atravessamos uma experimentação em torno da produção de sentidos.  

Se a pandemia gera uma neurotização da vida, ao sairmos dela estaremos mais neuróticos do que nunca se não cuidarmos agora dessa convocação à interiorização de que falamos no início. Entendendo a interiorização como motor da neurose, a pandemia poderá gerar em nós uma dificuldade radical na lida com o fora, com o exterior, o estrangeiro, com o que não sou eu. Outro efeito, correlato a este, poderá ser uma intensificação dos narcisismos já existentes, em especial em pessoas que ocupam posições subjetivas de poder, a saber, pessoas brancas, cisgêneras, heterossexuais. Passados meses interagindo com o reflexo de sua própria imagem nas telas, narcisos acharão, como nunca, muito feio aquilo que não é espelho. O perigo do recrudescimento dos fascismos nos espreita. E se a neurose, como dissemos acima, é também uma recusa ou uma dificuldade na lida com o desejo naquilo que ele porta de mais potente e disruptivo, a pandemia poderá fazer minguar a vitalidade desejante própria da vida elevando à enésima potência os casos de depressão e de suicídio.

Diante desse quadro aparentemente pessimista, mas que, na verdade, desvela o que já está acontecendo, algumas perguntas nos atingem. Existirá saída dos efeitos da pandemia sobre as subjetividades? Existirá um futuro onde haja a afirmação da vida desejante com toda sua multiplicidade e a constituição de uma comunidade global pautada na equidade e na garantia de direitos para todos e para cada um? Ou assistiremos atônitos ao fortalecimento daquilo de pior que pode aflorar nas coletividades humanas?

Talvez uma primeira porta de saída é sair de si mesmo, desinteriorizar ou desneurotizar. E isso não tem nada a ver com não cumprir as regras de isolamento. É desinteriorizar mesmo sem sair de casa. Quando perguntaram a Gilles Deleuze o que significa ser de esquerda, ele respondeu que era uma questão de percepção, um modo de perceber a realidade. Ao invés de partir de mim, do meu ponto de vista, eu parto do mundo, de um ponto de vista que vê o horizonte e não o espelho. Hoje, talvez de forma mais forte do que antes, quando olhamos o horizonte nos deparamos com uma multidão de milhões de pessoas vivendo sob a égide da precariedade, da subalternidade e da violência. Quando olhamos o horizonte percebemos, de forma ainda mais acentuada, o modo de vida capitalista, com sua concentração de riqueza nas mãos de poucos a custo da pobreza de muitos, e toda a fragilização dos direitos à saúde, à educação, à dignidade humana resultante do modelo neoliberal em que estamos inseridos. Quando olhamos o horizonte, iluminado pela pandemia que faz aparecer de forma monstruosa as sombras do mundo, percebemos o intolerável. O modo de vida global existente não é mais tolerável, não é mais admissível, não é mais possível.

Vivemos o esgotamento do possível e somos pegos, enquanto lavamos as embalagens das compras que chegaram do supermercado, por uma sensação de não haver saída. No início do texto, falamos da neurose como um fechamento para o desejo entendido como possibilidade de criação de outros modos de ser, estar, sentir e desejar. A neurotização da vida, como efeito da pandemia, aponta tanto em direção à paralização num certo estado de coisas e sua repetição, quanto em direção à urgência em estabelecer um novo campo de possíveis.

François Zourabichvili, a esse respeito, afirmou que a invenção de novas possibilidades de vida e, portanto, de novos modos de funcionamento das coletividades locais e globais, passa por uma nova maneira de ser afetado. E isso está relacionado com circunscrever o que é aceitável e o que é intolerável, o que é bem-vindo e o que precisa ser expurgado, o que dá alegria e o que dá tristeza. Fazer esse mapeamento tanto em relação à própria vida, quanto em relação às políticas nacionais e globais que regem a coletividade. A partir disso, forçar a abertura de um campo de potencialidades para a criação de novos modos de vida e de novos mundos. Este campo pleno de potencialidades é o desejo ou a vida em sua força de diferenciação.

Aqueles que são beneficiados pelo modo como o mundo se encontra, aqueles cujos corpos não são alvo das necropolíticas que visam a morte das populações racializadas e pobres, aqueles que lucram com a precarização do trabalho e da vida lutarão pela manutenção do estado atual de coisas, para que não haja mudanças. Voltados apenas para dentro de si mesmos, se recusam a ver o mundo desde uma perspectiva que não seja a do espelho de seus quartos e de seus extratos bancários. São inimigos da criação de verdadeiras transformações sociais.

Aqueles de nós que sentimos no corpo o intolerável desse mundo e que desde muito antes da pandemia sonhávamos com seu fim, aqueles de nós que recorremos às tecnologias ancestrais para seguir de pé num mundo que tenta, por vários dispositivos, nos destruir, nos vemos agora diante de um ponto de bifurcação da história em que grandes avanços podem acontecer e ao mesmo tempo graves retrocessos. Ponto de bifurcação da história que pode fazer o mundo tal como o conhecemos desabar ou fortalecer ainda mais suas estruturas fincadas na injustiça. Neste momento, é fundamental mantermos viva a aposta na vida e em sua potência de transformação, atravessando essa pandemia olhando para o futuro que ainda não sabemos como será, mas que sabemos como não queremos mais que seja e, a partir disso, desenhamos no horizonte o possível de uma outra realidade. Seguimos vivendo um dia de cada vez, mantendo firme nossas percepções do intolerável e de que modos outros de vida almejamos, conectados com aquilo que Frantz Fanon já havia nos alertado: “a vida é um combate interminável”.

Publicado em 15/05/2020